quarta-feira, 18 de março de 2009

Despertares

Há músicas que despertam monstros adormecidos. Já sabia disso há muito tempo... desde tempos idos... desde que o som do bater do coração era algo exterior, mas simultaneamente tão dentro.

A música tinha sempre o ignóbil prazer de despertar... o dom de acordar.

Assim, para evitar estes despertares tão inoportunos, ouvia as músicas uma e outra vez, e outra ainda quando já estivesse muito farto e as ondas sonoras não sugerissem senão verdadeiros acessos de náusea e enjoo. Mas aquela música não. Era diferente das outras. Aquela acordava-lhe as entranhas, que se retorciam dentro de si próprio num autêntico movimento rítmico de consumação mútua. Numa violência de dentro que não encontraria nunca um equivalente cá fora. Carne que comia carne. No entanto, encontrava neste repetir de sons desta música em particular, um prazer inaudível, uma satisfação sem paralelo,um sentir para além do pecado, uma vontade de prazer e de dor.

E este dia não seria diferente. Quando chegasse a casa, consumido pelas horas no estreitamento do caminho para a morte, sentiria novamente a paixão e a dor. A música voltaria a soar ao ritmo dos líquidos internos, dos ritmos viscerais. Das lágrimas e da língua. Do sal e da carne.

Só despertando com a música poderia voltar hoje, novamente a adormecer.No Sleep, Excessive Surrealist, 2009

sábado, 12 de julho de 2008

Melodia

A noite desce e as luzes ganham cor. No instante em que a música se solta, ritmada e quente.
Com a penumbra por manto e as luzes por ceptro, a guitarra torna-se trono. O corpo, um reino. Na metamorfose de ritmos, a alma dança em círculos ondulantes, fascinada e ébria, incessante e perigosa, com a volúpia da matéria.
Os dedos dançam nas cordas, os movimentos descem o ritmo, para voltarem a acelerar, em ritmo constante. Quedam-se os corpos. Fundem-se com o som. Sei agora o que é a melodia.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Uma questão de... (im)probabilidade

Dreaming of Deep Water, R. Steeds


Quando te encontrei não achei que fosse provável... com as horas, fui achando um pouco mais, com os dias era até possível, com as semanas, os meses, os anos... estava mesmo destinado.

Contudo, dentro de toda a certeza duvidei, como foi sempre meu inesgotável e franco hábito. E encostei-me à almofada de nuvem do meu pensamento. Suave, mas sólida... sem ilusões. De tão suave, que mesmo sem querer iniciei um leve embalar, uma serenidade tranquila de passos pequenos, que depressa tomaram o caminho do gigante.

Dormi. Dormi a sono solto. E sonhei. E dediquei tempo ao meu sonho. Os sonhos são reais pelo tempo que lhes dedicamos.

De tanto que te sonhei, que comecei a encontrar-te, a desenhar-te, a existir contigo. De tanto que te sonhei, que deixei de acreditar que fosses meramente um sonho. De tanto que te sonhei que não te pensei improvável.

Ainda assim, dentro da improbabilidade existes. Meramente porque não és impossibilidade.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Caminho Panic-Embryo

A leitura vai amaciando o caminho. Vejo nuvens nas pedras e açúcar na terra acre. Enquanto o caminho se faz... um pé descalço atrás do outro pé descalço... vestidos de lama, sou feita de chocolate. Que mel tão doce, este que me sabe a lágrimas e a mar (o mar é as lágrimas do mundo)... O caminhar torna-se pesado, mas mais uns passos arrancados e desenho-me umas asas. Pequenas. Minúsculas. Para não darem nas vistas e o sonho não se transformar em delírio ou loucura. Ténue fronteira... Mais dois passos, levitando... sou cega para o terceiro passo. Quero contar este e o próximo, mas não o seguinte. Não vou parar de andar. Nem vou parar de escrever. Talvez quando a tinta acabe... Não. Nessa altura compro mais tinta. E depois de toda a tinta do mundo, escrevo a sangue.

sábado, 19 de janeiro de 2008



Som Sem Mim"Cathedral Oceans III", autor desconhecido
Pergunto-me para onde foste, e a pergunta, mesmo sem ser audível, torna-se esfera repetida. Apercebo-me como é vulgar. Vulgar e triste. Como a música que tem sempre a mesma letra (com mais atenção verias que a melodia é diferente). (e que envolve e conforta)
Por mais que tenhas ido estás aqui. Por mais que aqui estejas, já foste. E o bater sussurrado e ritmado do músculo vermelho grita-me a saudade.
As mãos mutilam o corpo e pergunto-me para onde fui. Podes procurar por dentro e por fora. Até no limite da pele. Não me encontrarás. Há muito que fugi para fora de mim (para onde foste? para nenhures. existes? absolutamente. mas não moro em mim)
Toco somente com as teclas brancas, desafinado, inconstante e sem ritmo. As notas saem ao lado. Falta-me a subtileza das notas pretas, a orientalidade dos sustenidos e dos bemois. (falto-me. ponto. para onde foste? - teimas. um ponto é um fim, prevê que não existam mais perguntas)
Pinto-te com aguarelas. Achas-te esbatido (se olhares com atenção verás mesmo que desapareces enquanto a tinta seca. se entrasses dentro de mim verias que não é a ti que te pinto. não pinto sequer. faço-me desaparecer)
Se tocasses sempre assim, dormiria para sempre no teu colo. Vulgar e triste. Sempre banal.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008


"The Giving Trees", Osborne, T.

O que eu Te queria dar

Queria dar-te um raio de sol
uma brisa suave
uma calma profunda
um sorriso para sempre.

Queria dar-te um tempo sem tempo
um ano sem dias
uma vaidade
uma pintura perfeita uma presunção até.

Queria dar-te a neblina da manhã,
as ondas do mar,
o brilho das estrelas.

Queria dar-te flores
e frutos,
e aromas
e sabores.

Queria dar-te ramos
e raízes.

Queria dar-te o mundo inteiro
Queria dar-te o céu.

Queria dar-te beijos,
abraços,
meiguices.

Queria dar-te o meu olhar,
os meus cabelos,
o meu corpo.

Queria dar-te o que sei,
e também o que não sei.

Queria dar-te tanto,
e tanto que não posso...

Pois quando te der o mundo inteiro,
dou-te também a neve branca, o relâmpago amarelo e a noite negra .
Dou-te também a ruga cinzenta e o cabelo branco.
Dou-te a lágrima azul e o coração vermelho.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008


Dia Branco
Eva permanecia encostada no parapeito do terraço no último andar do edifício, observando a selva de cimento, agora quieta e parada. A madrugada bafejava gotículas dançantes de humidade tornando o citadino e o cosmopolita em quase onírico. Apenas o pensamento por dentro permitia estar por fora, inerte, parada, aparentemente suspensa no tempo.

Este - acreditava Eva - era um Dia Branco. Um dia sem tempo. Sem futuro, nem passado, só presente. Eva, com a suas rugas na Alma, ergueu-se, não com os pés ou as pernas, mas nas asas que acredita embainhadas na zona anterior do corpo. Sobe com suavidade ao parapeito e caminha na corda bamba, ao longo da aresta extrema do edifício. Parece fácil brincar com as probabilidades. Divertido até. Esboça um sorriso e este dá-lhe alento às asas. Aparentemente equilibrada, Eva é feita de desequilíbrio. O desequilíbrio que faz faltar espaço para o corpo, em que a esperança se envaidece frente ao espelho e se mascara de sorte ou de azar.

Agora que Eva saltita, chegando ao primeiro vértice e gira no sentido da aresta seguinte, o terraço parece pequeno e o parapeito parece estreitar-se.

Eva sabe que este é um Dia Branco... pode ser o que quiser. Apenas probabilidades, sem certezas, mas por isso mesmo, possibilidades. A neblina matinal permanece, enfeitando um espaço sem tempo, que não passa e apenas permanece.

Torna-se doce brincar com o bater do coração. Eva dança. Eva dança, rodopia, mistura-se com a neblina. Termina a volta ao edifício. Arestas com vértices, vértices com arestas, parapeitos transformados em cordas bambas, Eva, funâmbula do momento.

O Anjo sabe quais as suas probabilidades e em passo de artista pretende o desequilíbrio. Lança-se no espaço que cria inexistente. Afinal ele existe. Eva lança-se no abismo. O longo vestido branco descende em espiral e mistura-se com as asas. O que está por dentro transporta-se, enfim, para fora. Afinal as asas também existem. Eva pensa que é por ser um Dia Branco.